BOAS MANEIRAS


O sangue escorre pelos lados, misturado com porra quente. Com olhar terno a dona escarra o pedaço tenro de carne da boca, lambe os beiços e observa a mascara de horror do desfalecido. Aquele imbecil podia muito bem ter avisado antes. Bastava ele avisar, tomaria tudo sofregamente até não sobrar uma única gotícula. Mas não, ele tinha que bancar o safo, tinha que se achar no direito, tinha que me tomar o prazer. Enquanto se veste das cintas-ligas, se calça com os scarpins, se reveste no tailer, o corpo jaz inerte, incompleto, gemente, feição se acentuando doloridamente. Muito calmamente ela pega o resto do chão e com toda a delicadeza de uma lady na mesa, anda elegantemente até o lugar onde sua bolsa caíra, abaixa-se com uma mão cobrindo o sexo, como toda boa moça de família aprendeu quando menina, apanha-a, abre-a, toma um lenço, limpa cada canto da boca e um resto de lágrima que borrou seu rosto, enrola seu prêmio, guarda-o junto com tudo que uma mulher precisa para estar linda. Em câmera lenta caminha até o toilet, lava as mãos com um daqueles sabonetes de boneca, lembra do batom, retoca o rosa dos lábios, vê as horas, ainda faltam 3 pro amanhecer, pode deixa-lo dormir diz ela ao telefone, paga em dinheiro vivo, olha-o da porta, faz charme com os cabelos, entra no carro, põe a chave na ignição e antes da partida pensa alto: Quem sabe o próximo é um pouco mais cavalheiro.

 

COVARDIA

 

Menos que um triz durou o cruzar de olhares. Parecia espelho, mas não, de um lado espanto, do outro confusão. Um ficou fascinado com a possibilidade de ver-se copiado e o outro amedrontado pela probabilidade de estar alucinado. O derradeiro correu, peitos de pé percutindo a bunda, como quem tromba um malassombro. E o primeiro o perseguiu meio que só pra conferir seu assombro. Virou a esquina o cara medroso, se encostou, olho esbugalhado, dor de veado, coração na garganta... Dobrou a quina o tal corajoso, olhou intrigado a cor do assustado e fez a pergunta:

- Quem é tu porra!? - I...e...eu?...Tu num sabe não? - Sei porra nenhuma!...Caralho! Tu é igual a mim. - So..sou não, é não, é mentira! - Ta me chamando de mentiroso seu filha duma puta!?

Ni..n..nã...ãããooo...TBUF!.. POFT!.. TEBEI!...PEI! BUF. E aqui jaz o homem que temia até a sua própria sombra.


OLHO DE GATO

Podia ter sido deixado na porta da Funabem ou duma casa de família ou até mesmo numa lata de lixo. Mas não, deixaram o pobre menino, recém nascido bem na frente de um Cabaré. Era uma terça-feira, dia de parco movimento. Duas putas deram com ele, dentro de um balaio enfeitado de fitas, enrolado numa colcha de retalhos. Elas eram Maria Pão Doce, a mais antiga da casa, e Zefa Tempero, que era a mais feia, mas trepava e cozinhava como ninguém.

- Zefa, pia Zefa! benzatideu...qui mininim bunitim, parece um anjim Zefa, oi us oim dele zefa, é azuzim e os cabelin Zefa, benzatideu, galeguim quinem buneca de mio. Ramo cria o bichim Zefa, bora...

- Mulé, tu é doidja é? Cuma é qui noi vai criar esse bunequim aqui no brega? Eu inda arrumuãs trepada aqui alí, mai tu num arruma nem pu sá...

- Mai Zefa, ele parece cum aquele anjim queu tirei, u utimo tu lemba? Eu sonhei cum ele chorano, mi pidino pa fica...

- Tu qui sabi Maria, tu qui sabe, eu vomimbora pá drento, queru nem vê... Mai oia...O bichim surrindo, tão bunitim mulé, dá pena mermo de dêxa assim, nesse frii danado. Tá bom Maria, tá bom, ô vô ti ajuda a cria esse minino...

Batizaram o menino Cícero, mas todos o chamavam de Ciço-Gato, graças aos olhos que mudavam de azuis pra verdes, dependendo do clima e do humor. Com Maria Pão Doce aprendeu a amar e a cantar; com Zefa Tempero aprendeu as artes da trepada, com os clientes aprendeu a ler, escrever, fumar, beber e a jogar cartas e capoeira. Aos 13 já era malandro feito, ostentando terno de linho branco, sandálias de rabicho bicolores e um coração tatuado no peito com os dizeres: “Amor só de Mãe”. Escrevia poesia, fumava charutos baianos e só bebia Campari, por gostar da cor e do gosto meio amargoso na boca. Aos 18 era amado por todas e temido por todos, nunca se embebedava ou perdia no jogo. Punia “xexêros” e gigolôs violentos riscando seu nome no peito deles com a ponta de uma faca peixeira.

A Rua Almirante Barroso, Zona do Baixo Meretrício de Caruaru, fervilhava naquela noite de sábado. Em todos os bordeis a fauna de boêmios e a flora de meretrizes nunca fora tão rica. Maria Pão Doce e Zefa Tempero, graças à sorte do filho, tinham agora seu próprio bordel. Ao qual, Cícero dera o nome de Pensão Coração de Mãe em homenagem as duas. E lá estava ele, sentado à mesa de sempre, rodeado pelas mais jovens da casa, tragando seu charuto, bebericando seu Campari, recitando poeminhas que acabara de escrever, quando entrou no recinto, meio aos tombos, um rapaz esguio, aparentando 18 anos, de sorriso sarcástico e olhar ferino. Vestia calças verdes, sapatos brancos e uma camisa vermelha aberta até quase o umbigo. Ainda cambaleante, passou um tempo observando o movimento da casa. Vez por outra passava um pente azul nos cabelos negros, untados com óleo de coco. Num ímpeto andou até o balcão, onde estava Maria Pão Doce servindo beberagens.


- Sô todasordi meu fio, vai querê bêbê uque? noi tem Pitu, cêuveja, cunhaqui de alcatrão, dreia, jurubeba, campari, uisqui...

Ele apontou para a garrafa de aguardente na prateleira. A velha prostituta aposentada pegou a Pitu de rolha e um copo americano, antes de terminar de enchê-lo foi surpreendida pelo rapaz que tomou o vasilhame de sua mão e bebeu, quase de um gole só, meio litro da bebida e depois gritou zombeteiramente:

- Cumigu num tem pirreps!

Maria Pão Doce dá uma gargalhada e diz:

- Eita sede da gota serena! Bebi mai digava meu fii, sinão a rola hoje num assobe nem pru cem e uma cocada!!! RARARARARARARA....

De sua mesa, Cícero observava tudo com atenção. Uma das garotas, Nilza Beiço de Sapoti, era Paraibana, de Campina Grande, e havia reconhecido o sujeito.


- Credincrui! valei-me nossa sinhora! É Agápio da Lagoa dos Canáro, o malfazejo mai instinto ruim da Serra da Burburema! Aí meu Frei Daminhão, hoje vai te disgracêra pruaqui, Ciço! Pulamôdedeu esse homi é o cão, Ciço! Us povo lá di Campina dii que certa feita ele entrô num cabaré cua veia e lascô ela no chão de rastêra pru cima da fia morta, pegô nos grão dum caba até ele si ajueiá e dizê cumigu num tem pirreps, deu im 8 sordado de puliça armado, matô um cabo e um cumiçaru. Depoi deu uma navaiada na lâmpida e se escafedeusse pela janela sem ninguém nem vê...

Aterrorizada, Nilza Beiço de Sapoti ainda segurava forte o braço de Cícero que continuva impassível. Ela observava que os olhos dele, que antes eram azuis, quase infantis, estavam verdes e profundos. Ele a cumprimentou com um meneio de cabeça, levantou-se e andou suavemente em direção do balcão.

Agápio, injuriado com a audácia de Maria Pão Doce, bebeu em mais um gole a outra “meiota” de Pitu e gritou mais uma vez:

- Cumigu num tem pirreps!

Maria Pão Doce mais uma vez escarneceu:

- Eita Mulesta! RARARARARARARARARA. O franguim de macumba ficô
foi brabo...

Os olhos de Agápio semi-serram-se e se injetam de sangue. Tal qual um corisco, ele quebrou a garrafa no balcão. Maria Pão Doce arregalou os olhos e congelou de medo. Agápio gritou novamente antes de deferir o golpe:

- Cumigo num tem pirreps!

Quando estava com o gargalo da garrafa a milímetros da garganta da mulher, Agápio sentiu um brusco repuxo em seu braço e virou-se rapidamente, já com a navalha aberta na outra mão. O salão do lugar estava vazio, todas as pessoas estavam recostadas nas paredes, exceto Cícero que estava bem diante dele com um sorriso inocente nos lábios e as mãos enfiadas nos bolsos do paletó. Olharam-se nos olhos por um tempo que pareceu incomensurável. Agápio, sem deixar de fitar o adversário, começou a gingar. Pela impressão de todos a bebedeira de Agápio curou-se automaticamente. Ele sutilmente descalçou-se, baixou a mão esquerda até o pé direito, sem tirar os olhos de Cícero, e afixou a navalha entre dedos. Executou uma meia-lua visando a garganta do oponente que se esquivou com facilidade sem tirar as mão dos bolsos. Logo em seguida emendou um martelo alagoano fúrioso.

TEBEI!

Depois do som da queda, um silencio estranho se fez e os presentes viram Cícero sentado sobre o abdome de Agápio, que gritava feito um torturado:

- NÃO! NÃO!!! NÃÃÃAAAAAAAAAAAAOOOOOOOO!!!

Cíço-Gato levantou, seus olhos estavam azuis, voltou tranqüilamente para mesa da qual viera, acendeu um charuto, bebeu do seu Campari, deu um beijo de língua em Nilza Beiço de Sapoti e sentou-se.

Quem teve coragem de se aproximar do malfazejo derrotado, que chorava feito um menino, pôde ver claramente, escrito em letras sangrentas: Com Ciço tu tens perhaps.

EPÍLOGO

Dizem que depois desse episódio nunca mais se soube do paradeiro de Agápio, O Terror da Lagoa dos Canários.

[Sob inspiração do conto A Cantoria que nunca foi ouvida, em Zé Limeira o Poeta do Absurdo, de Orlando Tejo]

 

 

REFLEXO DE CARNE

Céu de chumbo. Tietê. Perfume inconfundível de monóxido de carbono. Multidão de malas chegando, saudades, reencontros, olhos esperando. Depois de meses e milhares de quilômetros uma cara comum se ergue entre outras tantas caras comuns, tentando vislumbrar um rosto em particular. Horas, a face não aparece. Do meio de tudo que lhe pertence, saca tremulantemente um fragmento com nome e sete dígitos impressos a mão livre, chama...chama...chama... E o sorriso sofrido não lhe beija o ouvido. Sorve o fumo daquele ultimo trago e absorto tenta imaginar porquês inimagináveis.

Imóvel, pressiona os bens entre as pernas. Perfil colado no vidro do verme metroviário, assiste à corrida das luzes, espera chegar Liberdade. Esquece. Chega. Tropeça como um pirralho no fim da esteira rolante. Na primeira placa - enfeitada de kanji- paga a propina exigida para se ter um maço de cigarros.

Joga tudo o que tem sobre um sofá acolchoado com um pano que um dia já foi uma cortina. Rouba um sobretudo cor de carvão, não satisfaz a ninguém e caminha de cara pra cima, suspirando fumaça de frio. Pega a fila dos antigos porres, talvez por saudades da falta da lucidez ou quem sabe do excesso.

Dois olhos rasgados fitam-no incessantemente, ele olha a si mesmo, se aponta e as sobrancelhas que emolduram o olhar kamikase arqueiam-se. O estranho traduz um sim nos lábios de hemácia. Num gesto harmonicamente perfeito ela o chama para si, enlaça-o e sem palavra alguma toma sua boca, deixando-o todo inundando de um gosto agridoce.

Depois da enchente, inacreditavelmente, ouve as duas parcas sílabas de seu nome recitadas suavemente, pé do ouvido. Esconde o susto. Devolve a tormenta. Toma-a pelo braço e põe-se em fuga até encontrar a calmaria. E da bonança brota um tsunami.

Chega a vez das palavras, ele engole sofregamente o amargo do copo e de supetão derrama:

-- Sinto, mas não sou o cara que você pensa que eu sou.

Riso, riso histérico.

-- Tá me tirando?

Riso incontido.

-- Cê não existe cara...

Olhos baixos, fundo do copo.

-- Eu até existo, só não sou o cara que você pensa que eu sou.

Cessa o riso. Olho no olho, olhos puxados mais puxados ainda.

-- O que foi que cê tomou? Que merda é essa? Ta me tirando garoto?! Cê tá louco ou ta querendo me enlouquecer?

Riso cínico incontido, seguido de olhos envergonhados.

-- Me desculpa, mas é verdade. Posso até parecer com esse cara, ter o mesmo nome que ele, mas eu sou eu e não ele.

Rosto encolerizado.

-- PORRA! Isso não tem graça nenhuma! PARA! Para com isso agora!

Olhar inocente.

-- Eu sei que isso é difícil de acreditar, mas eu não sou ele e posso te provar.

Olhos descrentes, bilhete da Itapemirim, carteira de identidade, milhares de verbos, juramentos, argumentos, olhos fixos, mais provas, mais provas, olhos de dúvida, mais provas, documentos na mesa, mais desculpas, olhos rasgados de fúria, cinismo, a mão que intercepta o tapa ainda no ar, olho no olho, olho cínico de um lado, olho assassino do outro, um sorriso petulante num canto da boca e uma pergunta:

-- Gostou?

Colheu tempestade. Tomou-a pela mão, navegou sua carne, encharcou-se nas suas águas, naufragou no negro-azul dos seus cabelos, inundou cada cavidade, desfaleceu, acordou sozinho. E até hoje o cara comum morre de medo e de vontade de dar de cara com ele mesmo num beco escuro de cidade.


Alex Camilo também escreve aqui