Riscou o céu de um ponto a outro unindo duas estrelas enquanto eu observava atento. Falava coisas sobre astronomia, a criação do mundo, a invenção das coisas e criava estórias de atiçar curiosidade. Atiçar desejos e outras vontades, vontades que ele nutria por uma moça chamada Nara. Eu ouvia sério. Apontou longe no horizonte uma estrela que aparece no verão apenas, pegou-a com as mãos e a entregou, souvenir da estação, presente para quem não está presente, presente para que não se esqueça mais, talvez a moça sorrisse. Eu sorri. 

Estação novembro. É primavera. A noite já aponta seus traços e ele espera. Todos os anos neste mês ele vem esperar pelo trem. Esperar Nara voltar. Ele está na estação e espera um trem que venha de qualquer lugar. Mas sabe que os trens passam por aqui e não trazem mais ninguém. Os trens passam e não nos leva a lugar algum. A noite mingua, estamos em Barbacena e eu estou de vigília na estação fingindo não perceber sua presença sentado no banco duro a espera do trem que não irá passar. Presença melancólica. Vê os dormentes, o correr dos trilhos, as longas distâncias que o separam de um ponto a outro. O separam do litoral às minas de ferro. Ele tenta ouvir o silêncio dos trilhos e vai se perdendo neles, no silêncio. Recosta-se no banco velho de madeira e ouve no silêncio trazido pelo vento as palavras que trouxeram conforto em momentos já esquecidos. Aprecio o silêncio que me apresenta aos objetos. O silêncio que vem no chiado que faz o vento nas folhas de bambus. Que vem bem de longe no apito de um trem que não tarda por chegar. Observa a estrela e vê a fotografia do rosto de Nara na moldura da memória. 

Sou Sorôco ao ver o trem partir. Sou Sorôco antes da canção que cantou bonito. Sempre me emociono com esta história e no caminhar das noites, solitário e de vigília no silêncio da estação reconto a mim mesmo o que Rosa não escreveu. Todas as noites esse rapaz repete suas histórias e hoje já posso contá-las como sendo minhas. Como a história de Sorôco. Histórias tristes da estação. Tantas pessoas que partiram, tantas pessoas que voltaram, tantas pessoas que ficaram. Conheci todos os que desembarcaram aqui com suas belezas e suas loucuras. Estas histórias não me pertenceram e hoje não posso me recordar. Mas Sorôco eu não conheci e o imagino como este rapaz que vem dizer todas as noites de novembro suas histórias para eu ouvir.  

Ele era jovem e disse a palavra amor. É o que ele sempre diz. Saiu de sua boca palavras de amor estranhas que me assustou. Disse apenas que amava. Falava dos belos olhos verdes de Nara. Lembro-me bem. Olhos de se admirar, faróis nas tempestades de verão. Ela manteve perdido o olhar no vazio de uma rua molhada. Era noite que podia-se dizer a última noite, mesmo sendo a primeira de tantas noites em que ele viria passar sentado no banco da estação de trem. Depois desse dia embarcaram em outras estações diferentes. Cada um para o seu lugar. Ela partiu para sempre, ele partiu-se ao meio. Barbacena seria uma paisagem preta e branca na parede da memória, uma pintura neo-moderna como Paris em dias de chuva. Talvez assim fosse Paris em dias cinzas como Barbacena em branco e preto como um retrato de Rocharch. Ela sorriu entreaberto, desconcertada, a língua travada na boca calada. Olhou firme para ele, olhos fixos, duvidosos. Olhos de quem pensa. Ele sorriu contente. Chovia. 

Chuva de novembro, eles beberam muito aquela noite. Sexta-feira regada a vinhos e gargalhadas estorvas. Chovia, e ela aceitou seu convite. Estavam felizes, bebiam vinho, bebiam muito. Ela falava. Ele olhava seus olhos, os olhos dela, admirava sua boca. Não ouvia as palavras, não prestava atenção, percebia o movimento dos lábios, os sorrisos o deixavam leve. Beberam outro pouco. E alguns desejos que já latejavam na pele ficaram na iminência de um beijo ainda não dado. Bebiam e sorriam. Foi aqui que ele disse a palavra amor. O tempo parou neste instante. Os sinais se abriram num verde gelatinoso passando um carro sem a pretensão de entendê-los. E ele seguiu com seus olhos, sem que Nara percebesse, as marcas dos pneus no asfalto molhado até que o carro dobrasse a esquina e ficassem apenas os seus ruídos que pôde ouvir até encontrar o silêncio das águas se escorrendo pelas calhas. Ele tinha dito uma bobagem muito grande e não sabia o que fazer depois. Algumas pessoas passavam em seus guarda-chuvas e isso o distraía enquanto ela permanecia em seu silêncio de boca entreaberta. Sorrindo.  

Foi assim quando Nara morreu. 

Imagino! Ele me repete esta história todas as noites quando vem se sentar na estação. Imagino-os caminhando abraçados e cantando a alegria de estarem ali num outro momento. A rua XV é recheada de poesia em suas palavras. Rua XV de Novembro. Tenho guardada comigo mais esta história, a memória do corpo moreno dele no corpo moreno dela, instantes antes de um beijo.  

Pareço insone e meus olhos estão mergulhados na imagem dos olhos dele. Olhos tristes. A estação reflete um cheiro de óleo e fumaça que me embaça as vistas, e na verdade gostaria de ver voltar o trem que te levou partindo, Nara. Sôroco viu partir sua mãe, sua filha e depois cantou bonito. Eu não consigo cantar. Vejo sua mão acenando adeus e choro calado no silêncio dessa noite em Barbacena. Espero desembarcar aqui a mãe e a filha de Sorôco para então dizer-lhes que não é preciso ficar triste, pois Sorôco cantou bonito e todos o acompanharam. Tento manter os olhos atentos na esperança de vê-las chegar, mas a tristeza desse estranho toma meu corpo, meus olhos, me comove. 

A estação já está morta há muito tempo. Passa por aqui apenas o trem carregando ferro. A terra treme com as locomotivas carregadas que me recuso a chamar de trem. Elas não enfeitam a paisagem, não carregam corações ansiosos e não me trarão ninguém. Estou acostumado ao silêncio e ao escuro, e me alegro à presença triste deste rapaz. 

A lua solitária no negro da noite parece um grito lançado no espaço e corta como faca os versos que teço no mais íntimo silêncio que busco em meu peito. Me sinto um poeta em companhia da lua e permanecemos sós. Nara não está aqui. Caminho e meus passos são ouvidos pela plataforma, já é hora dele voltar para casa. Nara não virá. Ele permanece sentado naquele velho banco e sei que vai se levantar. Estas certezas me encorajam. Sei que vai se levantar, mas não oferece resistência em permanecer sentado. Não tem para onde ir sem a bússola dos olhos dela. Caminho em sua direção. Terá que se levantar. Ele ainda não me viu, mas sei que se levantará. Vejo um pedaço pequeno de lua estampado no céu e ela não me significa nada nestas noites em que ele vem declarar seu amor à Nara. Queria uma noite de tempestades, de uma chuva que não tivesse fim. Queria que voltasse a noite em que Nara partiu para que ele pudesse caminhar sereno pelas águas se escorrendo por toda rua, descendo pelos telhados, pingando de todas as folhas de todas as árvores ao lado dela. Queria uma noite onde talvez Nara voltasse e desembarcasse cessando a espera dele. Ele se levantou em seu silêncio passando por mim, a solidão o acompanha, me cumprimentou com um breve boa noite, e se foi como quem perdeu o último trem, enquanto eu permaneço de vigília a espera do trem que trará a mãe e a filha de Sorôco para dizer-lhes como ele cantou bonito.

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Este é o blog do Carlos Renatto