Ela era magra, pequena e muito bonita Lá estava ela sentada e era isso. Apanhou uma folha que havia escapado de seu material.
      A folha dançou lentamente no ar, até que em um movimento súbito deslizou um bocado no piso frio até topar no pé de um banco.
      Seu cabelo preso bem alto escorria como uma fita caramelada sobre seus ombros frágeis.
      Eu a mirava por trás em silêncio enchendo minha cabeça com idéias fantasiosas pensando em como nos poderíamos viver em um contexto completo aonde eu poderia cuidar dela e de seus pequenos ombros, enquanto ela me amaria livrando-me de vez de minha brutalidade desenfreada.
      Ela saltou em frente a um colégio. Talvez em alguns anos eu a visse de novo, sendo a mulher de um médico de carreira que faria o parto de meus filhos, ou que curasse uma unha encravada de meus pés.
      Esbarrei-me com força contra as costas do assento, toquei os meus cabelos curtos com os dedos e soltei um suspiro irritado.
      Nada mudava, mas isso não me incomodava. Quando estava em casa eu gostava de me sentar sozinho na varanda e olhar os carros ao longe, fantasiando sobre suas vidas. De certo algo muito diferente da realidade em que viviam. Afinal quem quer fantasiar sobre uma vida banal e ainda por cima igual a sua?
      Os dias seguiam iguais aos anteriores. Era preciso vencer. Todos os instantes eram uma luta constante para provarmos ao mundo que ele não nos havia sufocado.
      Era o que tinha acontecido. Alguns caras de um dos colégios protestantes da parte rica da cidade fizeram pouco caso de nosso time de beisebol e então teríamos de resolver essa situação.
      Eu tinha me erguido. Talvez assim as garotas me notassem como um dos caras perigosos. Isso não era muita coisa, mas ainda assim era melhor do que nada, qualquer coisa era melhor que nada. Mas esse era o grande problema, todos tinham de ser alguma coisa. Em todos os momentos de sua vida, você tinha de ser alguém dentro do colégio, dentro de um emprego, de uma família... Tudo isso me irritava. No entanto lutar ainda era melhor que ser um homem morno vomitado dentro de uma vida medíocre.
       Algumas noites em silêncio eu rolava sobre minhas costas e perguntava a Deus a razão de toda essa mediocridade? As freiras de nossa escola nos ensinavam orações prontas e estavam sempre dispostas a nos passar alguns corretivos além de falar sobre a expiação dos pecados, mas nunca nos ajudavam com coisas como essas...nunca.
      Eu não me importava muito com as lutas, na verdade sempre as entendi como uma necessidade em um mundo de violência. Você teria de lutar sua vida inteira, de que adiantaria fugir de algumas delas? Mas de vez em quando eu as via como uma possibilidade de mudança. Talvez elas me conseguissem algumas garotas, ou um algum tipo de respeito barato no olhar das pessoas, mas o que realmente aconteceria era que na semana seguinte alguém levaria a melhor e você logo era esquecido. Um círculo vicioso de força e ganância.
      Cheguei ao local designado. Um bocado de rapazes já estavam lá. “Um bando de cretinos a procura de um espetáculo sujo.” Eu pensava enquanto caminhava por entre aqueles olhares débeis e entediados. Mas não importava, todos eles estavam ali por minha causa.
      Ao caminhar eu esguiamente buscava ver o rosto liso de alguma garota, talvez a garota do bonde... Nada. Provavelmente era melhor assim, talvez eu tomasse uma surra na frente de todos aqueles rostos idiotas. Mas nada seria tão humilhante como se alguma garota presenciasse o acontecimento.
      Tentei dar um drama maior a toda à cena. Soltei minha perna esquerda preguiçosamente para frente, alongando levemente o passo. Agarrei a barra de minha calça sem cinto com a mão direita, e baixei minhas sobrancelhas cabeludas. Mirei todos aqueles olhares sujos e vazios como um ex-detento, como um gangster, como um pistoleiro. E tive de conter um leve riso em meus lábios ao me imaginar daquele modo...
      Devia haver umas 20 pessoas nesse dia, e todos estavam ali por minha causa. Isso era de certo modo um pouco agradável.
      O lugar ficava em um grande pátio com algumas árvores muito velhas e secas. Estávamos cercados por dois prédios antigos e abandonados.
      Comecei a divagar sobre as pessoas que viviam dentro destes prédios. Não necessariamente desgraçados, apenas vagabundos que optaram por viver em um mundo diferente do nosso.
      Isso me excitou. De repente queria saber tudo sobre eles, queria amá-los todos como uma grande família composta por ciganos, prostitutas e assassinos. Poucas regras, muita liberdade... Essa idéia começava a me intrigar. Uma chance fora do mundo convencional de engarrafamentos e cervejas no final da tarde.
      Sentia que esse mundo me queria, se alimentava de minha loucura, de minha ânsia por algo mais, não necessariamente melhor, apenas diferente. Aos poucos eu me inflava mais e mais com idéias como essa. Cada movimento contrário a uma sociedade sufocante me disparava o coração.  Com isso eu ia aos poucos brincando com minha “Natureza Indignada”. Meu Ego. Minha Loucura. Meu egoísmo...
      Qualquer que fosse a coisa que me motivava em tempos como esses.
      Um vento frio cortou-me a face em silêncio. Olhei mais uma vez para os prédios. Algo dentro de mim tinha mudado.
      Suspirei pesarosamente. Desapontado. A vida não podia ser uma sucessão de tentativas e acertos ocasionais. Tinha de haver mais do que isso... Mais do que tudo que havia me motivado até então.
      Olhei pra cima. O céu estava cinza  e profundo. O ar muito frio, seco e empoeirado. Um som muito leve no ar.
      Dois pés grandes e de sapatos de couro muito novos, belos e brilhantes se puseram em minha frente. Eu não os queria mais. Eu não os invejava mais. Levantei os olhos vagarosamente e mirei o garoto que estava em minha frente. Seus punhos gordos e cerrados parados no ar. Seus olhos azuis e estúpidos me encarando. Suas bochechas rosadas queimadas de frio.
      Letargia demais.
      Recusava-me a interagir com aquela massa musculosa e engordurada. Sentia-me muito cansado e calmo.
      Olhei para o lado e me virei de costas saindo em passos lentos. Sob o olhar julgador de todos aqueles idiotas eu me retirava com um ar de superioridade.
      Todos abriam caminho para mim sem deixarem de me fitar com nojo.
      Um som muito parecido a um estalo ecoou no interior de minha cabeça. E então uma dor muito fina e intensa me apertava na parte de trás de minha cabeça.
      De repente uma salva de risos cobriu todo o pátio. Como isso era possível? Um garoto gordo, rico e estúpido tinha descido ao ponto de me atacar por trás com uma pedra. Os risos cessaram aos poucos e então, novamente todos me miravam esperando alguma espécie de ação.
      “Isto não é nada além de um preço que você se prometeu pagar, não desista agora seu frangote!”. Era uma necessidade. A minha ultima chance de escapar deste mundo de crueldade e loucura. Um mundo que já havia devorado metade de minha vida. Virei-me novamente e fui embora sob uma rajada de insultos.
      E então fiz uma coisa que há muitos anos não fazia. Enquanto caminhava rua abaixo respirei fundo e falei para os ares. “Foda-se Connie. Isso foi por você.”
      Desci a rua com calma. Tudo estava silencioso. O sol já havia se posto e fazia muito frio.
      Abri uma pequena porta de tela e empurrei a chave para dentro da tranca.
      Uma mistura de cheiro de talco com uma espécie de guisado de carne inundava a casa.
      Entrei no banheiro que ficava no meio do corredor e lavei cuidadosamente um pequeno corte coagulado no alto de minha cabeça. Tentei disfarçar o inchaço penteando o cabelo com água.
      Cheguei à porta da cozinha e a observei de costas. Seu cabelo farto longo e castanho estava preso no alto da cabeça e ela enxugava as mãos franzinas em um pano de prato que cheirava a alho. Finalmente se virou.
      - Ah, olá filho. - disse com seu natural entusiasmo. - Esteve tudo bem hoje? -perguntou com receio.
      Aproximei-me e beijei seu rosto pequeno e gelado.
      - Ótimo. - respondi com satisfação.