en su agonía preguntó por ti
Enrique Vila-Matas



    Nem a mãe que tanto se desdobrou soube explicar aquilo quando a polícia veio perguntar por que ele se fantasiaria para se suicidar. A casa era um quarto de despejo à luz das lembranças daquela senhora (velhinha é o caralho, muleque) de setenta e três anos, nem as manchas no chão do quarto ela se dispôs a limpar, ainda que o cheiro pudesse ser insuportável. O abajur caído ela também não levantou; de quê serviria fazer estas perguntas? Ele estava estendido estirado, ela não gritou, só chamou a polícia para remover o corpo porque já estava juntando moscas. O concreto conservou seu pulso, o assoalho sua silhueta, os lençóis seu suor e ela, só presença, perdeu a lucidez soterrada. Sentada no lugar de sempre balançando maquinalmente maquiada com as duas últimas lágrimas de Samael, de pierrô a escorrer pelo relevo da pele que ele não mais descobriria com dedos trêmulos. Sentou e era um pêndulo irrevogável, uma pergunta que pairava entre o carpete, as paredes de madeira e as fotos de gatos emolduradas por fôrmas de coração. Ela quis ser o cobertor e na pior das ocasiões a frustração mais árdua, a única possível porque, diferente de qualquer outra que o acometeu, única remediável. O nome e os gestos começam a se dissolver num abismo.  Estática ouve uma brisa balançar as cortinas sussurando a ausência. Enraíza a madeira de seus membros e dedos na carne da cadeira, a remela gruda os olhos porque não quer ver o ventilador destroncado com a corda ligando a haste a um pescoço, a saliva que se confunde com sangue para lubrificar as vísceras daquela memória. Não move nada perdida ainda se vê cozinhando para ele, dizendo que vai dormir e que não chegue muito tarde dessa vez, fingindo não reparar nas colherinhas de prata que sumiam cada vez mais constantes num rio cada vez mais caudaloso, moto-perpétuo, vai-e-vem a que se ateve e que não larga mesmo depois do mofo dos dentes, das pernas inúteis e da coluna amputada. Fixa as marés de seu olhar no vazio do kandinsky em frente ignora o céu e ignora o mar absorta, o ar a absorveu, não vomita movimentos, acorrenta ao filho desiludido com o bloco de cada não constituindo sua vida. E outras vidas, ar deserto que ali foi camisa-de-força.

    O barulho da rua invade a janela enquanto o hálito de dentro arrota negações, ninguém mora mais ali.

    Entraram lá, levaram a televisão nova e a antena parabólica e o microondas que ela se recusou tanto a ganhar e que ele insistiu em comprar, mesmo que em dez prestações. Um ladrão com requinte indaga os outros, tem problema se eu levar isso aqui, acho que vai ficar bonito lá na minha laje. Os outros aceitam e ajudam a carregar aquela cadeira tão pesada com uma estátua tão magrinha encima.

***

Para ler mais textos do Hugo Crema, clique aqui.