No dia em que eu completei 13 anos de idade, como de costume, abri meus olhos e
fiquei piscando, piscando e piscando centenas de segundos, até encontrar a luz ideal, para
enfim reconhecer o mundo que me rodeava. Meu cérebro ia, pouco a pouco, configurando
mecanicamente algumas imagens que a princípio somavam-se infantis ou estrangeiras, mas
que ao longo do tempo que se estenderam muito rapidamente, metamorfoseando-se como
reais.
Todos os relógios da casa marcavam oito e trinta, sinto que dormi mais que o habitual.
Os sábados eram dias de aproveitar todas as horas deliciosas da manhã, porque é dia de
não cumprir certas obrigações. Mas aquele dia, a perspectiva natural do nervosismo de
um aniversário me impulsionou a ficar grudado no travesseiro até mais tarde. Então, senti
de leve, como que impulsionado por uma ligeira estranheza gostosa, a ironia matinal me
povoar, igualzinho a todos aqueles outros dias em que acordava: o primeiro choque do dia
a gente nunca esquece. Eu pelo menos levo comigo até o final do dia e depois relembro
tudo quando volto pra cama, à noite, quando rezo pra dormir, e se é possível até sonhar
com estas coisas. No meu caso, a captura da primeira imagem do dia foi um exemplar
novo de um livro velho do Adous Huxley e o Admirável Mundo Novo que estava sobre a
cabeceira do criado mudo. O livro era uma farsa futurista sobre um novo mundo da ficção
científica. Seus personagens eram submetidos à escravidão libertária causada por uma es-
pécie de pílula, a SOMA, que causava um efeito de dormência da sanidade, mas não uma
loucura; um efeito mecânico de alegria e júbilo. Uma felicidade clandestina ou um paraíso
artificial — se é que posso dizer assim, ainda que figurando termos literários.
Toquei o livro com as mãos ao levantar e pude sentir imediatamente a friagem do chão
nos meus calcanhares enquanto caminhava para o mictório. Meu gato Manfredo estava
em cima da privada, ronronando alguma coisa, então tratei de chutar seu rabo fazendo
com que desse piruetas no ar, voando para fora do banheiro. A mijada ardia um pouco. A
cabeça do pau não saia direito do resto da carne que o encobria, me fazendo pensar que
tinha uma gigantesca fimose ali por perto. Como prático de meu próprio corpo, dei um
jeito de puxar a pele toda de uma vez, com toda a força, até ter a absoluta certeza que não
precisaria encarar uma circuncisão dramática, com pessoas desconhecidas de jaleco branco
numa sala fria de azulejos ensebados e ventilador de duas hélices. Todos querendo arran-
car pedaços de mim.
Lavei as mãos ignorando as dores no prepúcio. Ensaboei o rosto com uma espécie de
sabonete feito de areia, que diziam ser boas para cravos. Assim que enxuguei o rosto, me
olhei no espelho pela primeira vez, aos 13. Parecia o homem novo. O velho ficara enter-
rado em meus sonhos do dia anterior, quando resolvi que deveria me tornar mais adulto.
Porém, eu não estava com mais cara de adulto ou essas cobranças todas que as pessoas
diziam me faziam pensar (e talvez agir) assim. As únicas coisas que percebi ali no espelho,
cara a cara com Eduardo Castaño, eram umas pontas grossas de pêlos que começavam a
nascer, pontilhando minha mandíbula e o pomo-de-adão, dando lugar a leve penugem loi-

ra que abastecia meu rosto até aquele começo de ano. Dei com os dedos sendo levemente
perfuradas por aquela barba inconveniente que brotava no meu rosto e que vagarosamente
se cravava nas digitais, lembrando imediatamente da Brenda, que dizia para as meninas do
colégio, que sua virilha parecia uma lixa de pé.
Tranquei os pensamentos no banheiro junto com o gato que me olhava quieto e fui pra
cozinha encarar o café-da-manhã. Não havia ninguém em casa, ou seja, supunha que
minha mãe estaria no supermercado comprando coisas e o Yuri, meu irmão mais velho,
como de costume, aquartelado em Minas Gerais, na ESA – Escola de Sargentos das
Armas – se formando artilheiro do Exército.
Às vezes eu lamento de não o ter do meu lado no dia do décimo terceiro aniversário,
contudo, às vezes, tenho a impressão de entrar em uma leve contradição ao afirmar isto,
porque realmente eu não queria vê-lo. (Não hoje, nestas circunstâncias que mudaram
minha vida). Naquele dia, ainda pelas dez da manhã, eu ainda estava feliz, era o meu dia,
e eu queria que tudo ficasse assim, mas não foi.

Lembro que, quando era pequeno, eu gostava de brincar de ficar invisível, me sobrepondo
a todos os grandes feitos mágicos dos herois que povoavam a imaginação quadriforme
das televisões e HQ’s que se fundiam em nossa infinita imaginação de criança. Éramos
quatro garotos, donos do Clubinho dos Herois que ficava no topo de uma árvore cente-
nária que habitava os quintais da casa do João Carlos (Jeca-Tatu, para os mais chegados).
Lembro que brincávamos até o crepúsculo, que no horário de verão o sol tardava a descer
até o fim da rua, e só depois das sete da noite eu ia para casa jantar com a família. O que
os caras não sabiam é que depois da partida do sol, eu ainda fazia hora extra no meu
quarto, enquanto escutava a trovoada vocal do meu pai, seguido dos berros da minha mãe
enquanto eles trocavam ofensas mútuas; estilhaçando o rosto um do outro com palavras
mordazes, as mais crueis que até então, em minha curta estadia terrestre, eu havia presen-
ciado. (Penso na face escancarada da dupla, trocando rudes ameaças da lei da sobrevivên-
cia.) As palavras pesseavam pela boca um do outro como se fossem libélulas recém-nasci-
das, palavras meio tontas ou bêbadas que caminhavam em círculo indo e vindo, de boca
em boca, até morrerem sozinhas num curto espaço de tempo. Os segundos de um tapa.
Um dia, a Brenda me perguntou, tirando os cabelos que lhe caiam nos olhos:
— Você é feliz? Se dá bem com seus irmãos?
— Não tenho irmãos.
— Ah.
— Sou filho único, de pais separados. Família destruída como todo mundo...
Ela sorriu pra mim.