Um Romance Igual a Qualquer Outro

O Orto

Era quase dia ou quase noite. Eu estava com pressa ou estava no horário. Não! Eu nunca estou no horário, eu estava com pressa. Eu me sentia bem, mal. Tinha mais gente, eu estava sozinho. Eu queria mais uma bebida, eu queria a última bebida. Conferi o maço de cigarros. Restava um e ele estava quase que acenando pra mim. O último cigarro é sempreimportante, sempre aparece quando eu sei que só ele não será suficiente. Apresenta-se justamente quando o comércio já está fechado, ou quando eu não tenho mais dinheiro e não tem ninguém pra me fazer um agrado. Não sei se é um caso de inimigo sacana que aparece pra debochar da minha cara de desespero ou se ele é meu amigo e se guarda o tempo todo pra acompanhar-me na mais periférica solidão. O importante é aproveitar o momento no ato e não ter boas lembranças do mesmo. O primeiro trago do último cigarro é a minha conexão comigo mesmo, salvo pleonasmo. Eu paro. Eu penso. Eu fumo. Tudo que eu queria era ter mais cinco minutos com o meu amigo das horas difíceis. Desdobrei os segundos tornando-os quase eternos. Sentei-me no meio fio de uma rua pouco movimentada, o silêncio nessa hora é muito importante. Atiro fogo no meu amigo das horas difíceis. Ela aparece.

A Moldura

O paraíso é a falta de realidade em nossos sonhos. Remontamos belas imagens, distorcemos toda nossa tristeza. É como se tudo que vivemos, fosse previamente moldado por nós mesmos. Questão de segundo, o tempo milimétrico que temos pra raciocinar e entender a situação é quando a nossa mente distorce o fato com pequenas pinceladas de Pollock, para tornar aquilo mais prazeroso, mais agradável. Ficamos felizes quando queremos, ficamos tristes quando enjoamos da felicidade.
Eu entrei em ação. A minha imagem naquele exato pedaço de segundo estava sendo pincelada, não por Pollock, era Van Gohg.
Ela começa andar, lá de trás, parecia mais uma sombra vinda em minha direção. Tudo que eu precisava era alguém pra me incomodar. Eu estava muito concentrado, eu já previa até mesmo o barulho da sua respiração tirando a minha atenção. Eu estava repetindo o meu mantra, o sopro da fumaça. Quando dei por mim desconcentrei, pensando em como ela poderia me desconcentrar. Meu ritual, minha conexão, minha amizade, foram pro saco.
Comecei então a me esforçar pra adivinhar que tipo de mulher era aquela. Fiz a pior imagem possível da fétida mulher. Com certeza ela é uma inconveniente, isso por ter estragado o meu encontro com deus. Sendo inconveniente, com certeza, seria uma pessoa indiscreta, tipo aquelas mulheres que falam alto, que dão escândalo, que comentam sua transa com todo mundo com ar de sexóloga, faz o tipinho liberal que não tem pudores nem preconceitos, que não se ofende com perguntas íntimas demais, aquelas que gostam sempre de usar palavras másculas tipo “caralho” ou “xota” para que você sinta-se a vontade pra falar tudo o quê pensa de obsceno. A primeira vista se mostra a mulher ideal por falar palavrões e coçar a virilha, uma anomalia, a compreensão em pessoa, a solução para o sexo feminino. Todo esse teatro ela faz pra tentar descobrir como os homens conseguem com tanta freqüência o quê é um sonho para as mulheres. O orgasmo. Ela se aproximava, mas ainda estava longe. Já dava pra ver a cor do seu vestido, eu já sentia raiva mortal, estava pronto pra esfacelar por mais bela que fosse. Resolvi batizá-la. Perpétua, é o nome típico pra velhas narigudas que fedem a Minancora. Perpétua é um nome bom porque eu já a odiava e o ódio é pra sempre.

A Explosão

Ela está ali. Na minha frente. Um pouco quieta e ansiosa, o mundo pára. Os faróis iluminam o reflexo da lua, todo mundo dorme. Nós, acordados e sozinhos no mundo, naquele instante éramos as únicas cabeças pensantes do universo. Ela era uma mistura de todos os aromas e paisagens belas que eu poderia enxergar com tudo de insuportável que eu poderia imaginar de uma pessoa. Perpétua era linda e eu lhe neguei o direito da primeira impressão. Eu já tinha me impressionado antes de, pelo menos, ver seu rosto. Ela era uma injustiçada. Somos a primeira impressão que os outros têm de nós mesmos, nada mais que isso. E isso basta para que convivamos em sociedade. Enquanto fosse o quê eu queria, ela não me incomodava. E isso é o normal da raça, da espécie.
Sempre gostamos das pessoas que nos fazem bem, nunca apaixonamos por pessoas que nos maltrata, que nos sangra no primeiro ato. Acredito que eu me apaixonei por tudo que ela poderia me oferecer. Deixei o orgulho e o egoísmo gritarem e me apaixonei por todas as qualidades que ela tinha que faltavam em mim.
Isso foi o começo, o vacilo veio no milésimo seguinte, até então o que eu conhecia de Perpétua era a minha visão do seu rosto, o que eu ouvia de sua respiração, e a sua personalidade que eu montei em poucos segundos.
Você pode não estar preparado pra conhecer essa história de amor.
Perpétua inclinou leve o rosto pra sua esquerda, um charme essencial das mulheres. Soltou levemente seus olhos diminuindo-os, focando, assim, os meus que a ignorava. Eu fui empurrado pelo destino, que me obrigou a ver aquela cena.
Tudo começa sem sentido, por educação ou por excesso de confiança ela começa a tremer levemente os lábios, são movimentos imperceptíveis a olho nu. Seus músculos da boca estremecem lentamente em sintonia com o vento que bate fazendo algumas mechas de cabelo cobrir a metade esquerda do seu rosto. Muito ágil, ela levanta um dos braços e com a ponta dos dedos adormece seus cabelos atrás da orelha. Isso me faz ter uma maior noção de espaço, as maçãs do seu rosto evidenciam a localização de sua boca. Depois de umedecidos com a base inferior da língua seus lábios se esticam afastando-se um do outro. É muita sincronia pra tão pouco tempo. Os seus dentes apareciam vagarosamente enquanto eu pensava em quão patético eram as minhas observações. Eu já podia ouvir o barulho causado pelo atrito da ponta de seus lábios com os seus dentes superiores. Ao mesmo tempo eu não conseguia aceitar como tudo isso era confortável e doloroso.
No apogeu dos seus movimentos surgiu algo mais esplêndido que o sol, não se tratava de uma gargalhada. Não era um deboche, aquilo era tímido, uma simples junção de expressões corporais. Era santo e maldoso. Ela me desarma. Inclinei-me para melhor entender o que se passava. Torturei-me por todos os meus males, tudo o que eu era tornou-se cusparadas de um sorriso. Eu pensei em Gandhi e em Hitler de mãos dadas, rindo e se beijando após um passeio na praia. Eu me tornara um bobo que só.

A Morte (o sorriso e mais nada)

Todos riem. Vem de um momento inesperado. Um surto de alegria instantânea, o que se faz diferente de felicidade. Ah felicidade! Os anjos riam por esmero, vaidade. Os demônios debochavam desses com gargalhadas eternas. Raivas, susto, agonia, angustia emergem um pedaço de alegria instantânea. O sorriso é a recompensa. A gargalhada é o desespero, é quase um choro, é ardido e dói. Fere o estômago, cessa o ar.
Eu sempre analisei um caso estranho. Talvez por ócio, ou criatividade em demasia. Nós terminamos o sorriso aos poucos, gradativamente vamos eliminando todos os impulsos nervosos que o formam. Nossos olhos vão se abrindo lentamente, na velocidade exata do nível de tristeza que entra por nossas vísceras. A morte do sorriso é o nascimento da nossa tristeza. O sadismo é constante.
O decreto do sorriso obituário é a nossa última expressão. Se rirmos de uma piada, olhamos, por mera educação de berço, se todos já estão terminando a risada para assim relaxarmos no nosso funeral interno. Fecham se as cortinas, a alegria sai de cena, retorna, ao palco, a realidade. A última expressão talhada em nossos rostos nesse momento é uma aparência sofrida, quase uma careta. Pode ser pela contração dos músculos, ou pelo conformismo, entregamo-nos a nós mesmos o caráter do assassino e morremos todas as vezes que enterramos o nosso riso.
Com Perpétua não foi diferente. Eu lutei pra imaginar sua voz. Ela parecia tirar fotos minhas a cada instante, a cada cochilo dos seus olhos. Eu não entendia, eu nasci outra vez. Eu me apaixonara em menos de três minutos. Tudo foi muito rápido, em minha cabeça eu já vira filhos e netos. Bodas de prata e chá na varanda. Eu a queria pra sempre. Ela era tudo de melhor que eu já tivera quisto. Era a pior coisa que me acontecera. Fui do céu ao inferno. Eu era indigno, eu sabia. Sempre soube. Eu sou tudo aquilo que não vale a pena. Ela respira devagar e pergunta: “Você teria um desses para me arrumar?”. Eu não era capaz de lhe fazer esse agrado. Dei o último trago em meu melhor amigo, joguei-o no chão. Esmaguei-o com os pés e corri de mãos dadas com o meu orgulho. Foi o meu adeus ao que poderia ser perpétuo.

Pedro Melo